segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Dedalus - Insatisfação Crônica, partes I-III de V

DEDALUS SLOWACKI
13 a 17 de maio de 2005.

I

Espelho, espelho meu! É hora de (mais) uma conversa séria! Sim, é sobre a mesma ladainha de sempre: minha insatisfação crônica.
Fui inocente de acreditar que esse nomadismo todo me traria alguma realização. Vinte e dois anos morando na Polônia, outros cinco na França e os últimos três na Itália... Mas continuo me sentindo incompleto! Sendo piegas, mudei meu exterior, mas não meu interior.
Não que minha vida seja repleta de tragédia e tristeza. Pelo contrário, acho até que falta. Porém, pouca coisa até hoje realmente me fez plenamente feliz. Não faltou variedade; já tentei de tudo, desde a universidade até a mímica. Infelizmente, nada disso foi o bastante para me deixar mais contente em viver.
Espelho, como já lhe disse várias vezes, converso contigo porque não tenho ninguém mais com quem dividir a minha vida. Passo boa parte do dia calado – afinal, sou mímico! -, e, quando chego a casa à noite, despejo tudo o que eu queria falar a você, meu reflexo de vidro.
Em parte, é por escolha minha que sou solitário. Sou um individualista incorrigível; construí minha rotina de maneira à sempre estar voltado para meu próprio bem-estar. Até meu trabalho, por envolver muito a arte, me exige pouca dedicação à vida alheia; é quase auto-suficiente, como se nem fosse necessário que os transeuntes contemplem minha mímica.
Porém, não nego que gostaria de dividir minha vida com alguém, seja com um amigo ou com uma companheira. Já tentei das duas possibilidades, mas nenhuma delas durou o bastante para se consolidar e alterar minha rotina. Steven, em Nice, e Paola, aqui em Roma, que o digam.

Minha infância foi tranqüila, sem grandes traumas, tampouco momentos de extrema felicidade. Meus pais me proporcionaram um padrão de vida razoável, embora nunca fossem muito afetuosos. Na adolescência, fiz algumas amizades, e até mantive uma ou outra com o passar dos anos. Porém, com o tempo fui perdendo o interesse por aquelas pessoas; não sei se por achá-las entediantes, ou se era eu a encarnação do tédio.
Depois disso, entrei na universidade e fiz um curso de Literatura Polonesa por três anos. Vários dos livros e autores com que tive contato naquela época até hoje me marcam. “Solaris”, de Stanislaw Lem, é até hoje meu romance sci-fi predileto, com seu tom perturbador e tão desolador. Tem uma passagem que me marcou profundamente. É mais ou menos assim: “O homem saiu para explorar outros mundos e outras civilizações sem ter explorado seu próprio labirinto de passagens escuras e câmaras secretas, e sem haver descoberto o que jaz atrás das portas que ele mesmo lacrou”. Seria muita pretensão da minha parte dizer que isso é praticamente um resumo da minha vida?
Há também aquele que leio nos momentos em que estou um pouquinho esperançoso. Adam Mickiewicz é o maior dos românticos de minha terra natal, numa época em que a Polônia sequer era independente. Sempre recorro à poesia crua de Czeslaw Milosz quando estou desiludido e às vésperas de desistir de tudo, precisando desesperadamente de uma razão para manter a fé na “realidade”.
Fui, no entanto, me chateando com a universidade. Acho que não nasci para levar uma vida erudita, formal e com um futuro, tanto profissional quanto acadêmico, tão linear. Perdoe-me pela jocosidade, espelho meu, mas considerava a maioria daqueles professores e colegas como pessoas “quadradas”! Você sabe: sem paixão, sem alma, sem carisma, sem capacidade de fugir de um caminho fácil e conhecido.
Foi aí que me decidi por fugir daquele mundo, mas não só dele; também queria dar adeus à minha família, a meus parcos e desinteressantes amigos, à minha ex-namorada Katanyna... Enfim, à Polônia e a pouca atração que ela me exercia. Após algumas semanas de burocracia (na época, eu ainda tinha paciência para isso), arranjei um passaporte e fui para o Oeste. Europeu, é claro.

Mudei-me para Nice, na França. Escolhi-a porque ela tinha um ar de “meio-termo”: era populosa (uns 300 mil habitantes), mas não tão grande quanto Paris ou Marselha; tinha clima mediterrâneo, um equilíbrio entre chuvas e calor; é visada pelos turistas, mas de difícil acesso por ficar perto dos Alpes; é uma cidade histórica, mas que não chega a ser exageradamente nostálgica como uma Veneza da vida. Além disso, não me esqueci de que, certa vez, meu professor de Literatura Positivista – Século XIX mencionou que já havia morado lá, e cobrira a cidade de elogios. Mal sabia ele que alguém ouviria seu conselho...
Sendo sucinto, fui músico de rua durante uns três anos, mas cansei e resolvi virar mímico. É dessa época que conheci Steven Von Meek, um dos poucos colegas que fiz por lá. Com o tempo, no entanto, fiquei farto daquela cidade – e dos franceses em geral -, e resolvi partir para a Itália, onde moro desde 2002. Continuo na mesma: um mímico com Ensino Superior incompleto.
Ah, ainda sobre o tal do “meio-termo”... No fundo, tudo que eu faço é pautado por uma busca da “justa medida”. Só que, muitas vezes, isso é frustrante e infrutífero; ao evitar os extremos, eu permaneço em uma espécie de zona cinza, em que nada é especialmente interessante. É como se eu fugisse da possibilidade de, experimentando a euforia e a melancolia, encontrar-me. Será, espelho meu, que meu erro é justamente esse – não ser “selvagemente ambicioso”?
Não tenho a resposta, portanto contentar-me-ei em continuar falando da minha rotina, certo? Pois bem. As ruas de Roma continuam pouco interessantes. Como sempre, algumas pessoas param para ver minha mímica, poucas delas se divertem, a maioria ignora ou não acha graça... Enfim, o de praxe. Sinto falta de alguma novidade, de algo inesperado. Afinal, seria por meio de um desses solavancos que minha patética existência passaria a ter algum sentido, sabe?
Não quero mais saber, meu caro, de hoje.


II

Espelho meu, hoje vi um pianista que me fez lembrar Steven. Não, ele não tinha nem um décimo do talento de meu velho amigo – muito embora as pessoas do restaurante em que ele tocou jurassem que aquela performance foi boa. Porém, de qualquer maneira, recordei-me de uma das poucas amizades que fiz na época em que morei na França.
Nós nos conhecemos durante meu terceiro mês como habitante de Nice. Nos dois primeiros, eu ainda não sabia bem o que fazer e como viver na nova cidade. Cheguei até a ir a algumas daquelas palestras abertas ao público, dadas por sociólogos, escritores e tudo mais. Eles falavam sobre análise do discurso, narrativa polifônica, microfísica do poder, capital simbólico, e tudo aquilo que o mundo acadêmico francês adora. Mas, aquilo já não me interessava mais. Comecei a procurar um emprego; não tanto pela vontade de trabalhar e ganhar dinheiro, mas porque precisava de um mínimo para sobreviver. Só por isso; nunca tive grandes ambições profissionais.
Decidi-me, então, por ser músico de rua, pois eu sabia tocar violão bem, e seria um trabalho que também funcionava como distração. Além disso, esses europeus do Oeste são mais generosos que os do Leste, no sentido de darem mais gorjetas. Espelho, não vá achando que levei uma vida de mendigo, por favor! Meus pais, durante os dois primeiros anos, ainda me enviavam algum dinheiro. Não tanto por generosidade, mas por acharem que pais devem financiar os filhos até uma certa idade. Depois que pararam de me dar essa “mesada”, eu já tinha me organizado de maneira que nunca passei fome ou fiquei sem roupas e moradia. Um padrão de vida modesto, mas o bastante para me contentar.
Foi aí que conheci um rapaz calado na Place Massena, local em que eu mais costumava tocar. Após alguns minutos observando aquela figura frágil e pálida, puxei conversa com ele. Acho que o fiz porque fiquei perplexo ao notar que ele tocava... um piano! Oras, era um instrumento atípico para músicos de rua. Porém, fazia-o com tamanho talento que aquilo parecia um concerto de piano, mas sem ingressos que custavam centenas de francos.
Steven Von Meek tinha aproximadamente a mesma idade que eu; era dois anos mais novo, talvez. Inicialmente, não quis falar comigo; continuou tocando, como se não houvesse ninguém por perto. Quando terminou a música que estava executando (que parecia misturar “Jealous Guy”, de John Lennon, com trechos de Tchaikovsky – acredite se quiser!), ele começou a me olhar, como se quisesse demonstrar atenção pelo que eu viesse a falar em seguida. Comecei perguntando por seu nome; minutos depois, já estávamos discutindo nossas preferências musicais.
Nasceu ali, quando eu menos esperava, uma singela amizade.

Nossos diálogos sempre foram curiosos. Sempre que possível, ele respondia minhas perguntas e colocações balançando a cabeça em sinal de “sim” ou “não”. E, quando falava, era o mais lacônico possível. Foi só com o passar dos meses que ele começou a ser menos tímido, e houve até raras ocasiões em que ele puxou assunto para a conversa. Eu sei, caro espelho, que parece uma empolgação tola da minha parte, mas só conhecendo Steven para saber o quanto os pequenos gestos dele podiam ser, ao mesmo tempo, imprevisíveis e gratificantes.
Durante um bom tempo, foi divertida a nossa parceria musical: o violonista Dedalus e o pianista Steven! O público gostava quando ele tocava sinfonias em ritmo de jazz e eu fazia um folk acelerado no violão. Às vezes tocávamos em lugares separados; eu gostava de dar uma passada pelas redondezas do aeroporto, enquanto Steven era fiel à Place Massena. Mesmo assim, nos víamos quase todos os dias, ainda que fosse só na hora do almoço ou no fim da tarde.
Ele era incansável; quando eu parava para descansar um pouco, ele continuava tocando seu piano, como se parar fosse uma traição à música que executava. Não era raro que algum espectador se emocione com as músicas dele. Eu nem ligava de ser um coadjuvante naquela parceria musical; tocar violão por si só era prazeroso, ainda mais em companhia de um bom colega e de um público que, embora geralmente demonstrasse indiferença, vez ou outra se deixava encantar por melodias que não fossem aquelas do trânsito ou do escritório.
Porém, no fim de meu terceiro ano em Nice, nós já tínhamos nos saturado da música. Eu já tinha perdido minha inspiração; além do mais, o piano de Steven estava meio defeituoso. Foi então que ele surgiu com a idéia de sermos mímicos, pois sua própria forma de se comunicar com nosso público envolvia muitas gesticulações e poucas palavras. Muitos chegaram até a pensar que ele fosse mudo, ou mesmo também surdo.
Arranjamos camisas listradas: a minha era de mangas curtas, acompanhada de uma calça preta na altura da cintura; a blusa dele tinha mangas compridas, além de um suspensório que, combinado com os jeans, assemelhava-se a um macacão. A irmã dele, Julie Von Meek (falo mais sobre ela daqui a pouco, reflexo de vidro), sem saber bem o que achava de nossa “mudança de setor artístico”, emprestou-nos maquiagem para o rosto, e até ajudou-nos na pintura. A minha e a de Steven eram parecidas, embora a dele tivesse um semblante mais soturno, enquanto o meu visual ganhou um aspecto blasé.
Nossa primeira apresentação foi em uma praça bem no centro da cidade. Não me lembro se era a Massena, mas imagino que pelo menos era perto de lá. O inverno já estava acabando, portanto não escolhemos um dia sombrio demais para estrearmos nossa mímica. O pavimento era de cor cinza claro, com poucos desníveis. Parte do público que andava por lá não demorou em perceber a novidade. Havia crianças, idosos, executivos, vendedoras e até universitários. Houve momentos em que mais de 30 pessoas paravam para nos ver, mas também havia dias em que no máximo uma ou duas tiravam um tempo para nos observar. E, assim como nos tempos de músicos de rua, trabalhávamos umas dez horas diárias, com pequenos intervalos.
Posso ser honesto? Às vezes, eu até gostava dessa vida despretensiosa. Era bom não precisar ficar dezenas de horas semanais num escritório ou numa sala de aula, fingindo que está tudo bem em ser um “quadrado” estressado. Ainda mais em um país como a França, em que as pessoas já são inclinadas a não gostar de trabalhar de um jeito “workaholic”, excessivo.

Certa vez, conheci a já mencionada irmã dele, Julie Von Meek. Ela é um pouco mais nova que ele, e não foram poucas vezes em que ela viu nossas apresentações de rua, tanto na “fase musical” quanto na nossa, digamos, guinada profissional para a mímica. Um dia, estávamos tomando um café enquanto Steven estava se arrumando. Resolvi lhe perguntar por que o seu irmão agir daquele jeito tão estranho e misterioso. Ela me contou que nem sempre ele é assim, e que, aliás, quando está com ela, Steven chega a ser meio extrovertido e até maldoso; quando eram crianças, vivia aprontando com ela, aproveitando-se do estereótipo de garoto quieto que todos lhe atribuíam.
Olhe, espelho, não nego que fiquei surpreso. Tudo bem que eu já o vi agir de maneira mais irreverente (no bom e no mau sentido), mas ao saber por Julie que ele tende a agir de maneiras diferentes, dependendo da pessoa com quem está, fiquei em dúvida se Steven era realmente quem se fazia parecer para mim. Fui além nessa paranóia: será que ele de fato valorizava a amizade que tínhamos? A hipótese otimista seria a de que ele não precisa fingir ser uma pessoa estridente e agitada quando está perto de mim. Só que, desde então, instalou-se em mim a desconfiança: talvez ele não apreciasse a minha companhia...
Em meados de 2002, nossa relação começou a se desgastar. Ele andava irritadiço e desanimado. Tudo piorou quando, após algumas noites em claro e indisposições com a irmã, Steven teve uma espécie de colapso nervoso. Era uma mistura de catatonia com depressão, e ele chegou até a pensar em suicídio. Isso me deixou profundamente angustiado, e ajudei-o na medida do possível a melhorar. Mas, depois desse episódio, sem dar explicações, ele começou a se recusar a se apresentar comigo. Inicialmente alegou cansaço, mas depois começou a responder de maneira debochada quando eu lhe perguntava o porquê da súbita mudança de comportamento. Se fosse só por alguns dias, tudo bem, mas aquilo virou rotina.
Ele também teve sérios desentendimentos com Julie, demonstrando pouca consideração pela atenção que ela lhe dava. Acho, contudo, que a reação dela, embora um pouco justificável, foi exagerada: ela resolveu desistir do irmão. Espelho, houve pelo menos duas ocasiões naquele período em que ele passou muito mal, e eu tive que levá-lo ao hospital. Enquanto isso, ela alegava que nunca mais voltaria a se esforçar pelo bem-estar de seu irmão, visto que este nunca dera o mínimo de atenção à ajuda que ela sempre oferecia. Acho que faltou a Julie a capacidade de perdoar, por mais que seu irmão muitas vezes lhe fosse ingrato. Até mesmo porque, conhecendo Steven, eu sei que ele também amava sua irmã, embora agisse daquela maneira displicente.
Steven se comportava de maneira cada vez mais estranha; chegava mesmo a ser hostil comigo. Não se empenhava em sincronizar comigo na mímica, e chegou a importunar alguns dos pedestres quando estes o olhavam com desprezo. Não era incomum que ele começasse a, repentinamente, chorar e gritar comigo. Foi-se criando um mal-estar sobre o qual eu não tinha mais controle - e nem queria ter. Era o estopim para a decisão que eu já estava pensando há algum tempo: abandonar Nice. Já estava farto daquela cidade e aquele ar de hipocrisia francesa (você sabe, fingir que está tudo bem enquanto lamenta e resmunga às escuras), e os desentendimentos com um de meus poucos amigos por lá era o motivo que me faltava.
Mas, continuo essa história amanhã. Até que estou gostando desse desabafo, dessas recordações. Espelho querido!


III

Reflexo de vidro, eu ando em uma fase de reencontros. Hoje, acredito ter visto Paola em um restaurante. Sabe quem foi ela? Minha segunda namorada. A primeira foi Katanyna, na minha adolescência, mas não foi uma relação tão marcante e densa (ou seria tensa?) como aquela que tive com esta jovem romana.
Aliás, sobre essa mudança de cidade, farei um breve prólogo. A capital da Itália é uma cidade realmente linda, e dispensa maiores apresentações. Não me decidi por ela movido por princípios aristotélicos ou coisas do gênero. Para falar a verdade, foi por um acaso que fui para Roma: no dia em que estava na estação, havia uma boa promoção para quem viajasse para tal cidade durante aquela semana. Comprei imediatamente.
Lembra-se, espelho, quando falei dos solavancos, anteontem? Pois é, este foi um dos poucos de minha vida recente. Fiz uma escolha sem maiores reflexões ou planejamentos. Arrisquei-me, sem pensar tanto nas conseqüências (eu seria imigrante irregular, por exemplo), e os resultados foram até bons. Como eu tinha algumas economias, logo consegui alugar um pequeno apartamento, nos subúrbios. Com o dinheiro da mímica, e um ou outro bico (você sabe, aqueles trabalhos temporários, geralmente de fim de ano), daria para eu me sustentar. Foi com base nesse encanto da chegada que agüentei Roma no meu primeiro ano por aqui. Como sempre, não durou muito, e o feitiço estava se quebrando, e uma nova crise existencial se anunciando. Foi quando Paola apareceu na minha vida.

Paola Rossi também levava uma, por assim dizer, vida alternativa; trabalhava como vendedora ambulante de livros, nos mesmos bairros da cidade em que eu circulava. Começamos a conversar porque estávamos igualmente curiosos sobre as profissões “heterodoxas” um do outro. Ela queria entender melhor a minha mímica, e eu, o que a levara a ser uma comerciante autônoma de obras literárias – muitas delas raras e interessantíssimas.
Ela, assim como eu, também chegou a ser universitária. Fazia a Escola de Humanidades, Artes e Ciências Sociais na Universidade de Roma Tor Vergata. Paola era de uma família de classe média alta, e levava uma vida bem confortável, com direito a viagens para o exterior, roupas caras, um apartamento confortável e todos os livros e discos que queria ter. Porém, começou a se cansar da vida rica e pacata que levava; sua juventude ansiava por mais aventuras e incertezas. Até chegou a entrar em depressão, e recusou a terapia e os remédios que seus pais pretendiam lhe pagar. Aos 21 anos, ela decidiu largar a universidade. Arrumou as malas e foi morar sozinha, também nos subúrbios romanos.
Espelho, lembro que Paola tem a mesma idade que eu, mas às vezes parece ser dez anos mais velha, mas também dez anos mais nova. Tinha atitudes maduras, contundentes e dignas de uma mulher independente e que sabe exatamente o que faz. Mas, também costumava se comportar como uma criança mimada, geniosa e constantemente à beira de choramingar para os pais, pedindo socorro. Eu não percebi isso durante as semanas em que fomos apenas amigos; apaixonei-me sem saber desse “lado B” dela. Reparava apenas em seus cabelos castanhos, na sua voz rouca e na sua sensibilidade artística. Porém, quando começamos a namorar, passei a conviver diariamente com seu temperamento instável e inconstante.
Ela brigava por qualquer motivo, desde os mais justos - meu egoísmo, por exemplo - até os mais fúteis, como a sua preocupação excessiva com a opinião alheia, a arrogância não-assumida, o fato de detestar meu gosto musical e até divergências políticas (Paola era comunista, e eu, conservador). Eu, que julgava mais cômodo manter um relacionamento medíocre do que voltar ao vazio conjugal, pacientemente suportava todas as neuras dela.
Porém, chegou um dia em que eu não agüentei aquelas oscilações, com sorrisos coexistindo com lágrimas. Não que fosse uma turbulência insuportável, mas aquela repetição de pequenas alegrias e pequenas tristezas tinha me desgastado. Quando ela falou, pela 18ª vez desde o início do namoro (nas outras dezessete, ela sempre voltava atrás), que queria terminar comigo, eu finalmente disse “sim”. Acho até que ela ficou surpresa.
Quando acabou tudo, após seis meses de relacionamento, eu pensei ter acordado de um pesadelo. Espelho, preste atenção: não é que o namoro foi extremamente ruim, mas era justamente essa alternância entre bons e maus momentos, mas nunca pendendo absolutamente para um dos lados, que me irritou. Se, por um lado, Paola rompeu com a morosidade que reinava em minha vida, por outro só corroborou com as dúvidas e dilemas que tanto me marcaram até hoje.
Nós tivemos bons momentos, é claro. Saíamos bastante, nossa convivência doméstica (ela morou no meu apartamento durante alguns meses) costumava ser agradável, tínhamos altos debates filosóficos e literários... Porém, nossas personalidades eram muito diferentes, e a minha dificuldade em lidar com um relacionamento que demandava tanta paciência e sacrifício emocional, somada à inconstância do humor dela, destruiu aos poucos a paixão que sentíamos um pelo outro. O rompimento, felizmente, foi amigável. De vez em quando, até nos encontramos por acaso na cidade e conversamos.

Como estava dizendo, acho que a vi hoje. Não posso te dar certeza absoluta porque só pude enxergar as costas da garota, muito embora estivesse no mesmo restaurante e na mesma mesa que costumávamos freqüentar. Imagino que era Paola mesmo. Por que não puxei conversa? Estava sem vontade. Mesmo com o clima ameno que se seguiu à nossa separação, algumas daquelas memórias me atormentaram durante o último ano e meio. Ainda me pego olhando para você, espelho meu, à noite, pensando em como minha vida poderia ter sido mais satisfatória. Eu sei perfeitamente que deveria me arriscar mais, e não ficar esperando que as coisas caíssem do céu para mim. Mas sei lá, a letargia contaminou toda a minha alma, e não consigo reagir diante disso...
Acho que, tanto hoje quanto sempre, estava diante de uma miragem. Não sei ao certo. A vontade de encontrar um oásis é tão grande que, mesmo que inconscientemente, acredito em imagens, em impressões. A dúvida que alivia é menos dolorosa que a certeza que desconcerta. Enfim. Mas, veja bem: pressinto um novo reencontro, vidro de reflexo.

domingo, 29 de novembro de 2009

Derradeiro fim (por Julie V.M)

NICE, segunda-feira 22 de agosto de 2005.

Eu e minha consciência – parte 6

Por Julie V. M.

Desapego. Não deve ter outra palavra que descreva com tamanha precisão e amplitude e satisfação a quem a saboreia. Coragem talvez, mas creio que seja contígua. O que leva uma pessoa a destacar-se de seu todo sem etiquetas, sem lenço ou documentos, sem palavras nem qualquer coisa senão o seu olhar e suas sensações?Estaremos todos demasiadamente imersos na matéria para enxergarmos os outros ou a nós?

Há dias e dias. Dias em que não desejo acordar e, claro, dias de pura e incessante vida, limpa, límpida, cintilante e pulsante.

Ele.

Ele não é assim, ele não é assim. Ou, talvez, eu não quisesse que fosse. Mas essa não é uma das minhas histórias tolas que um borrão encerra e reinicia... história cujo borrão muda do “sem sentido” para a significação.

Redondo como um céu azul ele se revelou, ou se deixou revelar, pelos olhos... pela suposta alma que supomos existir em todos os seres...

Revelou-se, mas não era. Talvez fosse um alguém, um indivíduo. Talvez fosse e lutasse incessantemente para ser algo além dos números, transpor a importância familiar, quem sabe. Mas não era?! Era, mas não era ele, Steven. Meu Steven, fraterno e imaginário, feito móbile rodopiante, caleidoscópico que goteja amor.

A solidez de uma esfera de bilhar que denotaria (se fosse) é lisa, não áspera. É rugoso o meu chorar. Acabou.

Sim, acabou e o mundo está aqui. O mundo está aqui, rodando, girando, brilhando. Ele não está aqui nem em nenhum lugar. Por sorte – ou azar – não sei anda precisar sinto que meu peito (sombrio vale pantanoso) está senão é por falta. Falta. É isso, a palavra que faltava e sintetiza tudo desde o início, desde que ele se foi.

Acabou chorar.

Acabou todo o resto.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

SULIAN

OI Gente!

havia enviado por e-mail minha parte, pq não há como acessar blog do meu trabalho.

envio por aqui também.

Opinem construtivamente como quiserem, mas por favor se puderem, enviem por e-mail as opiniões pq n tem como acessar blog do meu trabalho que é o local que eu acesso a net .

isabela.reis@trf1.gov.br

Grande Abraço

Isabela Alves

Subverti minha personagem por não encontrar argumento palpável para o encontro dela com o pianista vejam como fiz:


Sulian é uma pianista kosovar que era aluna do pianista na faculdade de artes de Pristina.Eles eram amantes
( tive esse lampejo devido aos fragmentos da notícia que apontam para a possível nacionalidade do pianista).

Pristina é uma cidade de Kosovo.
Kosovo viveu e vive uma guerra pela sua libertação da Sérvia.Eles foram declarados independentes em 2008.
Pois bem, o pianista seria então um revolucionário kosovar que lutava pela libertação de seu país.Fugiu para Inglaterra e finge que é autista para se proteger. (essa é minha idéia)
A partir disso,julgando o amado morto, Sulian vive um conflito tremendo, só lhe restam as partituras do amado para recordar até que recebe a notícia do suposto pianista mudo e vai ao encontro dele.

Essa é minha idéia e formação da narradora.

seguem os links que embasam a história:


http://pt.wikipedia.org/wiki/Kosovo


http://freguesiadafacha.blogspot.com/2009/10/pristina-kosovo.html



http://www.movimentorevolucionario.org/artigos/kosovo.html

ps: o capítulo é curto à moda Machadiana e como um conto pois quis dar o exato toque dela vivendo esse momento com ele enquanto repassava a história deles.
Esse é o clímax, a incerteza do futuro de ambos.

aí vai a história:



SULIAN

A veia sobressaía em todo o longo caminho translúcido, pulsando soberana, que aos dedos calejados e finos acenavam imperiosas pelo toque.Envoltos pelo ameno frio ainda sem neve de abril,não era como em Kosovo que o frio corroia os ossos e o que havia dentro deles,a veia guardava a hemorragia dos amantes que por sua vez diluía o eco de uma história,de umas almas,de outras tantas notas,pulsando naquela pele de soneto.Seu desejo em meus ouvidos assim, em vapores de volúpia, o torpor profundo que aqueles dedos causavam não me deixavam dúvidas da conexão ancestral que sempre nos uniu.A convicção de que o depois daquele instante era morte me fazia subvertê-lo ainda mais.Éramos o desvio, o páthos na utopia daquele instante.Jamais saberiam o inteiro teor dessa relação, a marca de seus dedos fossilizada em minha carne guardada até o último dos meus fôlegos, latejava por esse instante que jamais poderia supor que ocorreria novamente nessa vida.As notas que me acompanharam desde sua partida, povoavam a atmosfera forjando sua presença etérea em devaneios abissais.E dessa forma, ia rastejando pela existência mas por medo de parar do que por vontade própria,sem saber se a morte o havia surrupiado de mim.Em Prístina,nossa gente cada vez mais era cercada e torturada, e você tido como morto.Os malditos bradaram sua morte como vitória dos imundos.Desterrada como alma que paira sem sentido, percorri as prisões e hospitais,nossos irmãos contactaram as fontes, mas só acharam pedaços de suas roupas e essa partitura com suas notas.Elas eram a única coisa que alimentava meu espírito de libertação.E eu as repetia compulsivamente ao piano,isolada, descarnada.Não podia mais freqüentar a escola de música,era perigoso para mim.Meu delírio me compelia a tocar, convulsionando-me para que assim ao menos a ilusão de sua presença voltasse a me visitar.Não havia mais dias, nem noites,o tempo foi suspenso para que eu somente tocasse e convivesse nessa dimensão paralela entre nós.Além de qualquer entendimento racional, eu compunha minha ópera que era a nossa transmutação.Até que aquela notícia reteve-me ao mundo real e a constatação de que era você o suposto pianista mudo provocou em mim uma sensação que ultrapassa o sentido humano de percepção, o engasgo de vida recobrou minhas cores e minha vivacidade.Sem pestanejar, fui ao seu encontro.São poucos que podem sentir esse sopro.À viagem no barco clandestino eu me apegava à ópera que havia composto em nosso nome, tinha a impressão que meu espírito ansiava por esse reencontro desde o início das eras.No momento em que te revi na hospital, emudecido e tocando, um pouco mais corado, todo o resto do trajeto se olvidou da memória.Seus olhos inquietos , de grandes cílios me acenando como em código de silêncio foram o bastante para entender todo o resto.Eles jamais saberiam, e o único sopro de vida latejava nesse momento, o depois é farsa e morte.


Isa Alves





segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Dedalus - Momentos finais do capítulo

Eis uma versão preliminar da reta final de meu capítulo, a partir das anotações da última aula.
Em breve, postarei o início e o meio da trama de Dedalus.

- Boa tarde. Meu nome é Dedalus Slowackii. Moro em Roma, e tenho... tenho informações sobre um indivíduo que a polícia localizou três semanas atrás. Costumam chamá-lo de “o homem do piano”. Pois bem, acredito que ele é um amigo meu. O nome dele é Steven. Steven Von Meek. Ele tem mais ou menos a mesma idade que eu, seu cabelo é curto e loiro escuro, é descendente de franceses e de nórdicos, e razoavelmente alto. Tem um comportamento tímido, introvertido e excessivamente sensível e, é claro, uma aptidão musical fora do comum. Eu me disponibilizo a enviar, à polícia, fotos que tirei com ele, ou mesmo algum tipo de documento que possa facilitar a investigação. Tenham uma boa tarde. Arrivederci.

- Boa noite. Tudo bem, Julie? Lembra de mim? Sou o Dedalus. Dedalus Slowacki. Um amigo do seu irmão, o Steven! Pois bem, é sobre ele que quero falar. Você viu? Ele está na Inglaterra, está até na capa dos jornais! Estão chamando-o de “homem do piano”! Estranho, não? Como assim? Ele está em Nice? Não, mas... Foi ele que apareceu nos noticiários, tenho certeza! Você não leu nada sobre esse caso? Hein, você o viu anteontem? Mas, não é possível. Tem certeza? Que... Ah, tudo bem. Desculpe-me, então. Au revoir.

Ela está enganada. É ele mesmo, poxa! O que deu na cabeça da Julie para ser tão vaga e fria no telefone?

Pensando bem, não é a primeira vez que o vejo envolvido numa situação estranha. Teve, por exemplo, aquele colapso nervoso, 3 anos atrás, às vésperas da minha mudança para Roma. Mas, essa história de “homem do piano” deve ser a maior de todas!

É verdade que a relação com Steven nunca foi das mais fáceis, mas a amizade dele era inestimável. Afinal, ele era um sujeito fascinante, dotado de uma sensibilidade única e de um talento enorme. Mesmo assim, para as coisas chegarem a esse ponto, em que Steven vai parar, maltrapilho, na Inglaterra... É um sinal de que eu não conseguiria viver sequer um mês a mais em Nice.

Algo, no entanto, está me perturbando. Sobre a Julie, para ser mais específico. Por que ela está negando tão veementemente o sumiço do próprio irmão? Lembro-me que a relação dos dois era complicada, mas não me parecia tão delicada assim. Que absurdo! Ela mente sobre o paradeiro do irmão!

Sim, ouso afirmar que ela está mentindo! Aquele que vi nos jornais é o Steven, o mesmo com quem convivi durante quase cinco anos! E que não me falem em coincidência; o “homem do piano”, tanto física quanto psicologicamente, só pode ser ele. Julie está despejando suas neuras em relação ao irmão nessa história. Aposto que ela não quer mais lidar com ele, então simplesmente nega, pois pode viver sem ele – e, que os outros cuidem de Steven, não é mais problema dela!

Fico muito chateado com o que está acontecendo. Eu considerava Julie uma boa pessoa; confiável, embora pouco paciente. É, parece que estou em uma fase de “revisão de conceitos”: Steven mais perturbado do que nunca, sua irmã em negação compulsiva, Paola deixando de fingir que está tudo bem e que é auto-suficiente... E eu, mudei? Sou uma pessoa diferente? Acho que não. Ainda sou o "nômade que sofre de insatisfação crônica".


Amanhã mesmo vou procurar as fotos e documentos, e enviarei para a polícia. Enfim, só mesmo o Steven para se envolver em uma confusão dessas...

terça-feira, 10 de novembro de 2009

este é só um pequeno pedaço... ainda estou terminando de escrever... mas leiam e por favor critiquem! Quero opiniões gente!!

Primeira parada: Bar. Tenho que tomar algumas para esquecer a tristeza. Lembro-me de uma vez que resolvi problemas sem o apoio fiel do álcool. A única. Tenho o álcool como um amigo fiel. Ele é para mim assim com as asas são para o avião. Falando nisso, preciso viajar. Vou esquecer que um dia estive na porra daquele lugar. Pensando bem... Pretendo voltar para a porra daquele lugar. É lá que me sinto bem. É naquele lugar que tenho toda a liberdade que preciso. Droga... O que vou fazer agora?!? Vou pegar minha velha máquina de escrever e correr atrás de uma boa notícia!?! Não... Já sei... Vou tomar aquela cerva bem gelada. Já tive muitos relacionamentos. Uns muitos bons que duraram um luar, outros nem tão bons assim, mas que deixaram saudades. Agora quem ocupa o lado B da minha cama é Cecily. Ela parece se importar comigo. Possui alguns pontos positivos. Um deles é me fazer mudar do uísque para o vinho, o que provavelmente significa mais três anos de vida. E eu precisava destes anos extras. Afinal eu ainda escrevo pouco. Escrevo sobre a minha vida, sobre a vida dos outros, enfim, escrevo sobre coisas podres.

sábado, 31 de outubro de 2009

O que eu também estou escrevendo

Oi, pessoal, este é o diário da minha narradora, enfermeira que trabalha no hospital psiquiátrico. Gostaria que ela contasse os dramas da vida dela de forma leve, num tom confidencial, quase um desabafo. Mas também que ela possa ser engraçada sem se tornar uma caricatura, nem cômica ou irônica demais. Enfim, queria mostrá-la como um ser humano com seus altos e baixos, erros e acertos, medos etc etc. Desde já agradeço as críticas e sugestões que puderem fazer. Abs,
Yukie


Diário da enfermeira 1


Sentia muito frio. Estava com medo. Medo de quê? Não sei explicar. Estava escuro. Tudo era névoa. Fazia um silêncio absoluto. Queria correr, mas meus pés não me obedeciam, estavam congelados. Queria gritar, mas nenhum som saía pela minha garganta. Queria levantar as mãos e chamar alguém, mas meus braços estavam mais pesados que chumbo. A água gelada subia rapidamente. Sabia que ia morrer afogada. Já podia senti-la entrando pela minha boca. Estava salgada. Logo me cobriria até a cabeça. Tentei me mover novamente, nada, não podia me mover. Olhei para mim mesma, mesmo no escuro podia perceber meu corpo de cisne. Havia também outros cisnes naquele lugar, não podia vê-los, mas podia senti-los. Todos parados, imóveis, tão congelados quanto eu. De longe ouvi uma voz me chamando: − Ivanna, Ivanna ... − Tentei pensar naquela voz que vinha de um lugar tão distante. De quem seria? Não conseguia me lembrar. Quis responder, tentei abrir a boca, mais uma vez não consegui. Mas meu cérebro estava lúcido, minha capacidade de percepção estava intacta, meu medo era real, só não podia me mover. Não conseguia nem gritar nem chorar. Senti mais frio ainda. Podia sentir meu coração bater descompassadamente. Me senti sufocar... Meus pulmões... cadê meus pulmões? Tentei respirar mais uma vez. Estava paralisada. Sabia que era o fim. Sabia que ia morrer. Ouvi um som estranho, um barulho como um grunhido de um monstro pronto a atacar. Gritei de novo, nenhum som saiu. Ouvi o barulho novamente. Entrei em pânico. De repente, dei um pulo. Caí. Caí tão rapidamente que ... acordei. Senti o impacto no chão. Olhei em volta, estava escuro, tentei me lembrar onde estava. No meu quarto, é claro. Passei a mão pelo meu rosto, olhei para as minhas mãos, sim era eu mesma outra vez. Ah, que droga, mais um pesadelos daqueles! Sou daquelas que caem da cama quando tem um pesadelo. Bom, pelo menos o tapete é macio. Suspirei aliviada. Foi apenas um pesadelo. Mark ainda estava roncando. Detesto quando ele ronca. O problema é que ele ronca todas as noites. TODAS AS NOITES!
Durante algum tempo fiquei ainda meio grogue. Meu cérebro continuava meio dormente. A água salgada, os cisnes, uma voz me chamando pelo nome... Aos poucos fui me refazendo do pesadelo. A voz, acho que era do meu pai me chamando, como costumava fazer sempre que eu tinha pesadelos. Depois ele me dava um chá para tomar. O chá russo que só ele sabia preparar no samovar . Era muito bom, tinha chá preto, cravos, noz-moscada e menta, às vezes ele colocava um pouquinho de vodka ou rum. Depois eu voltava a dormir profundamente e quase sempre me esquecia do pesadelo. Água salgada e cisnes, que relação estranha. Afinal, os cisnes não vivem em água doce? Pensando bem, talvez tenha alguma relação. Ontem na capela do hospital ouvi o jovem pianista tocando trechos de O Lago dos Cisnes , de Tchaikovsky. Até chorei de emoção, de alegria e tristeza ao mesmo tempo. Lembrei-me de meu pai, ele adorava ouvir esse compositor russo. Antes de morrer meu pai disse para não me esquecer de ouvir músicas russas, principalmente os eruditos. Mas tinha me esquecido sim. Há quanto tempo não ouvia Tchaikovsky? Acho que desde que meu pai faleceu. Lembro-me que era meu sonho ver o balé de O Lago dos Cisnes, durante meses fiquei pedindo ao meu pai. No dia do meu aniversário de dez anos, ele me disse que meu presente eram os ingressos para o balé. Na época não havia percebido, mas hoje sei que aqueles ingressos devem ter custado muito caro para o seu salário de carpinteiro assalariado. A apresentação foi no Teatro de Londres. Vestimos nossas melhores roupas e fomos eu, meu pai e minha mãe. Meu irmão não quis ir, disse que balé era coisa de meninas. Ele continua preconceituoso até hoje. Tudo foi simplesmente inesquecível, o teatro, o balé, a música. Tudo era tão chique e tão elegante, parecia um sonho. Foi o melhor presente que poderia receber em toda minha vida. Mas a peça foi tão dramática e tão triste. Acho que foi por isso que passei a ter esse tipo de pesadelo. Chorei até o fim. Continuei chorando por algum tempo ainda nos meses que se seguiram. Literalmente mergulhei no lago de Tchaikovsky, que não eram salgados, mas nos meus sonhos sim. Vai entender os sonhos, não é?

Coisa que eu escrevi

Gente, essa é a minha tentativa de carta. muito embora a personagem esteja bem sólida, meu esquema de diário estava muito mais natural e acho que a carta não está muito boa. prefiro ter mias liberdade. acho que posso encontrar isso, de repente... de qualquer forma, aqui vai:

Querida Virgínia,

Como anda tudo aí na França? Me deu uma nostalgia... Parada na janela, eu me lembrei de tudo e em parte do que eu realmente gostaria de esquecer. Mudar geograficamente não adiantou muito... Antes ainda estivesse na França, antes ainda estivesse naquela minha onda cheia de bolhas e cardumes estanhos, águas-vivas me queimando! Antes aquilo tudo a esse frio, esse estar na Inglaterra com Carmem, minha família e quase completamente sozinha.

Ontem o dia amanheceu fresquinho... Batia um vento gelado e o sol estava esquentando a pele. Pensei em Julliet e sua forma delicada de segurar a máquina fotográfica. Sua forma de fingir que dava extremo valor às minhas notas sobre psicopatologia, que eu lia para ela a fim de verificar se a forma da escrita não estava nem arrogante de tão formal, nem inadequadamente coloquial. Queria ter coragem de pegar na gaveta, o desenho que ela me fez: eu num balanço olhando pra lua, num balançar infantil. Ela na lua pescando as estrelas. Sei que sou da terra. Que a simplicidade da terra me prende... Sei que não posso chegar à lua hoje, que dirá amanhã, quando mais e mais a terra me houver consumido... Mas por que me lembrei dela? Sim. Lembrei-me de Juliet, por causa de um desenho, feito por um cliente novo na clínica. Ele não tem nome, mas tem identidade: um piano de calda, isolado do mundo, que ele desenhou com perfeição e fortes, alguns delicados por fazerem parte de detalhes que só alguém que é um piano, ou ao menos se reconhece como, pode conhecer e saber o que, de fato, significa... Ele não se comunica de forma alguma, que não desenhos e música, mais música que desenhos. Deve sair no jornal, alguma nota sobre o caso dele. Aqui, quase virou uma febre! Muita gente o acha genial, mas na verdade muitas pessoas com dificuldades na comunicação verbal apresentam uma maior aptidão para outras formas de comunicação, você sabe. A maior parte das pessoas pensa que ele é um gênio que está internado por não falar... Oras! Pode até ser que este seja um dos motivos de terem-no internado, mas sua jornada comigo não é a respeito disso: falar... Ele precisa melhorar sua comunicação para melhor se inserir socialmente e, para viver, melhorar suas crises! O objetivo não é, jamais será, que as pessoas se satisfaçam com o comportamento dele , mas sim que ele possa se satisfazer consigo mesmo e no contato com outra pessoas e levar uma vida mais plena, sem tantas crises e mais possibilidades... Como defendo meus métodos e princípios! Nossa! Como uma tola, uma sonhadora... Como a menina no balançar inocente, olhando para a lua onde mora a outra menina: Juliet, inalcançável! Será que um dia poderei pescar estrelas ou serei sempre terra, fértil e sólida, mais sólida que fértil?

O que você acha Virgínia? Sinto muito a falta de sua companhia, das suas piadas sem fundamento... Como está indo com seus alunos? Alguma promessa na psicologia? Lembro que nossos professores estavam sempre em busca de algum aluno, que fosse uma promessa... “Ao menos uma promessa!”. Que achavam que ser professor era algo como colocar a esperança acima do Sol... Bons tempos aqueles de nossas aulas! Bons tempos em que não tínhamos a esperança, a espera: tínhamos o hoje, o mais valioso dos dias.

Mande um beijo para o Jean! Carmem está bem... Nas nuvens, como de costume, mas interage melhor com as outras pessoas agora e também começa a se interessar mais por artes, o que é bom para dar espaço àquela imaginação toda. Na escola não vai muito bem sabe? Como estão me cobrando muito com relação ao meu novo cliente, não tenho tido muito tempo para acompanhar as tarefas de casa, principalmente matemática: ô menina pra não gostar de números... Ainda por cima está encantada com um garoto na escola! Quero só ver quando começar a namorar, o drama que não vai ser nessa casa. Que meus professores não leiam isso nunca: acho que vou ser a paranóia em pessoa...Vou colocar você, dinda, pra conversar com ela. Será que vamos começar aquela odisséia da adolescência? Por enquanto ela ainda está tranqüila... Linda, acima de tudo!

Responda às minhas cartas em cartas! Nada dessas mensagens eletrônicas!

E venha me visitar assim que puder!

Saudades enormes e beijos maiores!

Amor,

Violet.